“Helter Skelter”. Uma das mais famosas canções do álbum homônimo dos Beatles lançado em 1968 (também conhecido como o “Álbum Branco”), regravada por vários artistas, entre eles Aerosmith, Mötley Crüe, U2 e Oasis. Para muitos, o marco inicial do heavy metal. Como foi que uma música concebida apenas para ser uma diversão barulhenta, acabou se tornando uma fonte de inspiração de alguns dos crimes mais chocantes dos Estados Unidos no século passado? Vamos recapitular brevemente este trágico episódio, desde a concepção da canção até os trágicos crimes liderados por Charles Manson.
“Esta é música mais barulhenta, crua e suja que já gravamos”
Pete Townshend, do The Who, sobre sua música “I Can See For Miles”.
“Seria ótimo fazer uma música assim...”
Paul McCartney, ao ler a entrevista de Townshend.
“É totalmente Paul... não tem nada a ver com nada, e menos ainda comigo...”
John Lennon, sobre “Helter Skelter”.
“Estou com bolhas nos meus dedos!!!”
Ringo Starr, baterista dos Beatles, gritando ao final de “Helter Skelter”.
“Por causa desta música eu perdi minha mulher”
Roman Polanski, cineasta, sobre “Helter Skelter”.
“Esta é uma canção que Charles Manson roubou dos Beatles, e nós estamos roubando de volta”
Bono, vocalista do U2, ao anunciar “Helter Skelter”, no filme “Rattle And Hum”.
UMA “RESPOSTA” AO THE WHO
Nos idos de 1968, os Beatles haviam definitivamente deixado de ser aquela banda de composições inocentes de seu começo de carreira. Gradativamente, o experimentalismo passa a fazer parte de seu som. A essa altura, já haviam lançado os maravilhosos “Revolver” e “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, que fugiam totalmente dos padrões do “iê-iê-iê” de seus primeiros anos. Paul McCartney admite que a idéia de fazer um álbum como “Sgt. Pepper’s” surgiu após ele ter ouvido a obra-prima dos Beach Boys, “Pet Sounds” – Paul teria se sentido desafiado a fazer um álbum ainda melhor do que aquele da banda norte-americana. Pois o mesmo sentimento de necessidade de “se sobrepor à concorrência” apareceu durante as gravações do famigerado “Álbum Branco”, onde a idéia agora era de superar um feito do The Who.
Em entrevista à revista Guitar Player, Pete Townshend, guitarrista e líder do The Who, afirmava que “I Can See For Miles”, do álbum “The Who Sell Out”, era a canção mais “barulhenta, crua e suja” que eles já haviam gravado. Instigado pela declaração, sir Paul resolveu ouvi-la mais atentamente, pensando em como seria divertido fazer uma canção seguindo tais parâmetros. Em seu modo de ver, a música do The Who era até que bem sofisticada e estruturada, longe do caos que a tal declaração poderia sugerir. Desafiado a gravar algo realmente barulhento, ele escreve “Helter Skelter” (que foi creditada à dupla Lennon – McCartney, como todas as canções que qualquer um deles compusesse, mesmo que isoladamente, dentro da banda). O termo em inglês significa “confusão fora de controle”. Mas para os britânicos era também o nome de um popular tobogã que era sucesso em parques de diversões. A letra da música traz em sua primeira estrofe justamente uma descrição do que seria uma volta no tal brinquedo: “When I get to the bottom I go back to the top of slide, where I stop, and I turn, and I go for a ride, till I get to the bottom, and I see you again...” (“Quando eu chego ao fundo, eu volto ao topo do escorregador, então eu paro e me viro e dou uma volta, até que eu chegue ao fundo e lhe veja de novo...”).
Uma letra boba e despretensiosa, mas que gerou ao longo dos anos as mais diversas interpretações. Segundo Paul, a princípio a idéia seria de uma música sobre a ascensão e queda do Império Romano, usando metaforicamente a imagem do escorregador, mas que no final acabou sendo “apenas uma canção ridícula e divertida, que nós gravamos por gostar do barulho”. Para alguns grupos radicais religiosos, a canção abordava a descendência ao inferno, mostrando alguém numa tentativa de escapar de suas profundezas e não conseguindo – baseando tal teoria em metáforas estapafúrdias e no vocal “desesperado” de Paul. Já para o sociopata Charles Manson, os tais versos iam bem mais além, como veremos mais adiante.
AS SESSÕES DE GRAVAÇÃO
Foram feitas várias e várias tomadas, durante o processo de gravação do álbum mais desconcertante do quarteto. Uma de suas primeiras versões tinha a incrível duração de 27 minutos e 11 segundos (!!!). Segundo depoimentos de quem já a ouviu, era mais arrastada e hipnótica do que a versão final que chegou ao vinil. A lendária versão longa chegou a ser cogitada para fazer parte da coleção “Anthology”, mas o produtor George Martin, após ouvi-la mais uma vez, achou que não tinha nada demais, e foi feita a opção por outra gravação mais curta, de 4:37 – na verdade, tratava-se de uma edição de outro longo take, que durou cerca de 11 minutos, aproximando-se bastante da outra mais longa. Quanto à versão que realmente entrou no disco original, foram gravados no mesmo dia 18 takes, durando em média cinco minutos cada um. E foi justamente o último deles o escolhido como definitivo, onde ao final pode-se ouvir Ringo jogando as baquetas pelo estúdio e gritando: “I’ve got blisters on my fingers!!!” (“Estou com bolhas nos meus dedos!!!”). Reza a lenda que enquanto Paul gravava os vocais, George Harrison corria pelo estúdio com um cinzeiro em chamas sobre sua cabeça, como uma espécie de coroa flamejante à la Arthur Brown... Tudo devidamente registrado em um misterioso vídeo que os fãs jamais assistiram e permanece arquivado no acervo pessoal do grupo...
Um outro detalhe curioso: a versão definitiva de “Helter Skelter” não foi produzida por George Martin, como de costume. Ele se encontrava em férias, e Chris Thomas havia sido contratado para substitui-lo no período. Chris relata que inicialmente sofreu muita rejeição por parte da banda e mal conseguia abrir a boca. E a coisa piorou ainda mais após seu primeiro diálogo com um Beatle. Ao conversar com Paul, sua motivação foi de vez para o ralo. Segundo ele, foi mais ou menos assim.
PAUL: 'O que você está fazendo aqui?'
CHRIS: 'George (Martin) não te falou?'
PAUL: 'Não!'
CHRIS: 'Bem, ele disse para eu vir até aqui e ajudar vocês.'
PAUL: 'Bom... se você quiser produzir nosso disco, você pode. Se você não quiser, então eu posso te dizer para ir se f...'
CHARLES MANSON E SUAS “FAMÍLIAS”
Charles Manson nasceu em Cincinnati, Ohio, em 12 de novembro de 1934. Era filho de uma prostituta (sem trocadilhos) alcoólatra e seu pai mal parava em casa. Em um lar tão desequilibrado, a consequência não poderia ser outra: logo ele se tornou um delinquente juvenil, e frequentemente era internado em reformatórios, acusado principalmente de crimes de falsificação e roubo. Não demorou muito e, ao fugir de um deles, foi expulso de casa pela mãe. Chegou a se casar duas vezes nos anos 1950: no primeiro casamento, por volta de 1956, teve um filho, que nasceu enquanto ele estava preso por ter perdido um de seus julgamentos; no segundo, em 1959, contraiu matrimônio com Crystal Gosser, que depois se revelou uma serial killer e foi internada em um hospício. Após várias outras prisões por todo o país na década seguinte e o nascimento de um segundo filho, em 1967 ele se muda para San Francisco, no auge do movimento hippie.
Na Califórnia, Manson se refugia em uma velha fazenda abandonada, outrora utilizada como cenário de velhos filmes de faroeste. Lá implanta uma espécie de seita com princípios extremamente questionáveis, onde seus seguidores são chamados de “A Família” e crêem piamente que Manson, o seu “messias”, é o próprio Jesus Cristo reencarnado.
Dentre os atos pouco ortodoxos difundidos por ele estão a máxima nazista da supremacia da raça branca, a separação das crianças de seus pais, invasão e saque de residências e lixos de supermercados, além de orgias regadas a muito LSD entre seus membros. Depois de algum tempo, Manson acha uma nova fonte para suas idéias insanas: ele acredita que os Beatles são os cavaleiros do apocalipse que vieram à Terra anunciar o fim do mundo através de suas músicas. E para ele tudo estava claro em várias de suas canções, principalmente as do “Álbum Branco”, que formariam um grande apanhado com as tais mensagens que só ele via: “Yer Blues”, por exemplo, incitava ao suicídio (“Yes I’m lonely, wanna die...” – “sim, estou só, quero morrer...”); “Revolution #9”, que segundo ele narrava os sons do próprio Armageddon; “Blackbird” seria sobre os Panteras Negras (“You were only waiting for this moment to arise” quer dizer “Você só estava esperando por este momento para se erguer” – mas “arise” também pode significar “rebelar-se” ) e “Piggies” sobre os “porcos brancos” (“...and for all the little piggies, life is getting worse...”; “...what they need is a darn good whacking...” – “...e para todos os porquinhos, a vida está piorando...”; “...o que eles precisam é de uma boa surra...”). E a “cereja do bolo” seria “Helter Skelter”, que na concepção do maluco tratava da batalha final na Terra, onde os negros conseguiriam impor sua soberania sobre os brancos e o mundo como conhecemos chegaria a um final trágico...
HELTER SKELTER COLOCADO EM PRÁTICA
Apesar de tanta maluquice, a seita de Manson cresceu bem, e a idéia agora era expandir suas idéias para o resto do mundo, e o primeiro passo seria através da gravação de um disco. Mesmo com toda a influência que conseguia ter, inclusive em pessoas donas de cargos importantes em estúdios e gravadoras, ele não obtém sucesso na empreitada, não passando da gravação de um compacto simples. Em 9 de agosto de 1969, indignado com o produtor musical Terry Melcher, filho da atriz hollywoodiana Doris Day, por ter lhe negado um contrato para lançar um álbum com suas músicas (inclusive a suposta versão original da canção dos Beach Boys “Never Learn Not To Love”, do álbum “20/20” dos californianos, que ele afirmava ser um plágio de sua música chamada “Cease To Exit”), Manson recruta sua família para um ato radical: como o tempo estava passando muito rápido e o fim dos tempos se aproximava, a saída era invadir o apartamento que pertencia ao produtor e assassina-lo, iniciando ele próprio o que seria o “Helter Skelter”, o único meio de chamar a atenção do resto da população para a tragédia iminente. Só que Melcher não residia mais no local, e quem acabou pagando por tudo foram a nova moradora, a atriz Sharon Tate, e seus amigos. Tate, em seus últimos dias de gravidez e esposa do cineasta Roman Polanski, promovia uma festa em casa com alguns amigos. A “Família” liderada por Manson consegue invadir o local e promove uma chacina sem precedentes. A atriz, para se ter uma idéia da covardia, faleceu com dezesseis facadas, onde cinco delas já seriam fatais isoladamente, segundo a perícia. Com o sangue de suas vítimas, os assassinos escrevem nas paredes palavras como “Helter Skelter”, “Political Piggy” (referência a “Piggies”, chamando as vítimas de “porcos políticos”) e “Arise” (extraída da letra de “Blackbird”). Curiosamente, um dos membros da “Família” atendia pelo apelido de “Sexy Sadie”, mesmo nome de uma das músicas do disco branco dos fab four.
Mal houve tempo para a imprensa noticiar tamanha tragédia e Manson e seus seguidores arquitetam mais um crime absurdo. Aleatoriamente, escolhem uma nova residência para cometer mais assassinatos, pois ele julgava que os atos da noite anterior não haviam tido o resultado desejado. Chegam à casa de Leno LaBianca, presidente de uma rede de supermercados da Califórnia, assassinando não só ele (com 12 facadas e 14 ferimentos feitos por um garfo de duas pontas ), mas também sua esposa (com 41 ferimentos perfurantes). No peito de Leno, entalharam em sua carne a palavra “War” (“guerra”). A barbaridade dos crimes causaram pânico entre as celebridades e pessoas ricas que moravam próximos aos locais escolhidos pela “Família” para cometer seus atos. Apesar disso e da similaridade dos crimes, bem como as armas utilizadas e as palavras escritas com sangue, a polícia tratou os crimes como casos isolados. Manson e seus seguidores acabariam sendo presos em uma batida policial na fazenda onde moravam. No decorrer do processo judicial, fatos estranhos aconteceram, como o assassinato de Ronald Hughes, advogado de defesa que ousou desafiar as vontades de Manson, bem como tentativa de homicídio de Barbara Hoyt, testemunha de acusação, utilizando-se um hambúrguer cheio de LSD.
Tudo foi retratado detalhadamente no livro de mais de 700 páginas chamado (adivinhem só?) “Helter Skelter”, de Vincente Bugliosi, o promotor que liderou o processo contra a “Família” – um dos mais longos da história dos Estados Unidos. O livro deu origem, ainda, a dois filmes, um feito para o cinema em 1976, e outro para a TV em 2004.
Charles Manson foi condenado à pena de morte, mas devido a uma alteração nas leis da Califórnia (que aboliu este tipo de condenação) teve sua sentença alterada para prisão perpétua. E infelizmente, ao que parece, ele fez escola, afinal o que já surgiu de doidos nesses quarenta anos depois, matando ou se suicidando, dizendo terem sido influenciados por músicas e filmes... Ele faleceu em 19 de novembro de 2017, em decorrência de uma parada cardíaca e com câncer no cólon, aos 83 anos.
Matéria originalmente publicada no Whiplash!
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