Rush: 40 anos do clássico Permanent Waves



O Rush talvez seja o power trio mais famoso da história do rock. Se não o mais famoso, pelo menos é o de maior sucesso comercial, com certeza. E o mais interessante: sem nunca ter feito concessões, nem se vendido ou se tornado comercial. Seu grande êxito se deu graças à sua extremamente fiel legião de fãs espalhada ao redor do mundo, inclusive dentro do próprio meio musical, tudo muito bem demonstrado no documentário "Beyond the Lighted Stage". Você que é fã do trio se lembra de como foi seu primeiro contato com o som do grupo?

Com certeza, para a grande maioria dos fãs brasileiros na casa dos trinta e poucos anos, o primeiro contato, mesmo que extremamente involuntário, aconteceu com a infame vinheta com que a Rede Globo anunciava o início de cada episódio da série "MacGyver" (aqui, "Profissão: Perigo"), onde se ouviam os acordes iniciais da antológica "Tom Sawyer" - abertura aliás que nada tinha a ver com a original norte-americana, muito menos a canção do Rush.




Fora essa experiência citada, lembro-me que meu primeiro contato de verdade com alguma música dos canadenses se deu na casa do grande amigo Giuliano Tiburzio (que se tornaria vocalista e baixista do Recordando o Vale das Maçãs). Ele tinha em suas mãos duas fitas cassetes que seu professor de contrabaixo havia lhe gravado, contendo os álbuns "Permanent Waves" e "Moving Pictures". Lembro exatamente que a primeira música que ouvi foi "The Spirit Of Radio", e enquanto tentava assimilar o que ouvia, Giuliano dizia "esses caras são criativos demais...". Para o moleque que na época só ouvia Queen, Van Halen, Iron Maiden e Scorpions, aquele som parecia meio difícil de digerir - tantos arranjos diferentes, aquelas letras e títulos complexos, que falavam sobre livre arbítrio, a escadaria de Jacó... Mas continuei ouvindo junto ao amigo, e não demorou muito tempo até que estivesse idolatrando o grupo.

E eis que este primeiro álbum que ouvi do Rush está completando quarenta anos de seu lançamento - apesar de a historinha acima ter acontecido alguns bons anos depois... Como uma singela homenagem ao disco que me introduziu ao maravilhoso universo do grupo, venho recordar junto aos internautas faixa a faixa deste que é, sem dúvidas, um dos melhores trabalhos de sua carreira.




No final da década de 1970 o Rush se encontrava numa verdadeira encruzilhada: embora gozassem de prestígio cada vez maior, os excessos do rock progressivo eram vistos com péssimos olhos pela indústria musical e pela mídia. Mesmo tendo construído sua carreira e imagem alheios a estes fatores, o trio mesmo se demonstrava insatisfeito com os rumos que suas composições estavam tomando. Seu último trabalho, "Hemispheres", levou tanto tempo para ser composto e gravado que quase acabou ficando sem vocais, gravados meio "às pressas", após os três terem passado um tempo enorme esmerando seus arranjos intrincados.

Nessa mesma época, outro power trio ganhava cada vez mais espaço na mídia e elogios da crítica especializada, o The Police. Sua mistura de rock, ska e reggae fazia muito sucesso, e os canadenses não passaram incólumes ao seu sucesso - Neil Peart mais assumidamente, dizia-se grande fã. Assim, "Permanente Waves", produzido pelo então fiel escudeiro Terry Brown, mostra exatamente o período de transição entre o rock progressivo setentista e o som influenciado pelo new wave que viria a ser demonstrado pelo Rush nos trabalhos pós "Moving Picutres". Aliás, o som apresentando nestes dois álbuns de 1980 e 1981 é uma mistura tida por muitos como a melhor fase do grupo.




Logo na abertura, a excepcional "The Spirit Of Radio" que, após a ótima introdução na guitarra de Alex Lifeson, traz algumas dobradas de baixo e guitarra de tirar o fôlego, sempre acompanhados pela bateria indefectível de Neil Peart. Em seu andamento, percebemos uma canção de astral elevado, uma levada empolgante, variações de ritmos (com direito até a uma passagem reggae antes do solo de guitarra, citando claramente o The Police). Até hoje é presença obrigatória nos shows do trio, e continua como uma de suas melhores composições.

A segunda faixa é nada mais nada menos que "Freewill", tema de arranjos intrincados, com mais uma belíssima letra composta por Peart, que fala sobre o livre arbítrio e a liberdade de escolhas das pessoas ("se você escolher não se decidir, ainda assim fez uma escolha"). O momento mais festejado pelos fãs nas apresentações ao vivo deste tema fica por conta do solo, onde os três músicos praticamente solam ao mesmo tempo. Outra presença obrigatória até hoje em seus shows.




Encerrando o lado A do vinil, vinha "Jacob's Ladder", que com seus mais de sete minutos mostra o trio retomando as origens de rock progressivo. Após o clima criado na introdução com Geddy Lee passeando pelos teclados e cantando em um tom mais sombrio, temos Lifeson dando um show nas guitarras com seus riffs e solos, até que a música volta aos teclados (com Lee agora no Moog) e Neil Peart tocando os mais diversos itens da enorme percussão que rodeava sua bateria.

Virando o disco, "Entre Nous" é mais uma grande canção que fala sobre relações pessoais e as diferenças entre as pessoas. Uma boa introdução, com o Moog sempre presente de Lee entre os arpeggios de Lifeson e a bateria de Peart. O refrão com belos acordes no violão de 12 cordas demonstra toda a versatilidade e criatividade de Lifeson no período - uma ótima versão ao vivo está contida no CD e DVD "Snakes and Arrows Live". A subestimada "Different Strings" é a música mais calma e intimista do álbum, merecendo uma audição mais cuidadosa para apreciá-la - muitos fãs costumam pular este tema, pois queriam ver o trio "descendo a lenha".




Encerrando tudo, temos a fantástica "Natural Science", com certeza a faixa mais progressiva e a que mais lembra o Rush dos álbuns anteriores a este. Dividida em três temas diferentes ("Tide Pools", "Hyperspace" e "Permanent Waves", de onde saiu o título do disco), o trio aqui despeja toda a sua energia e fecha com chave de ouro este trabalho marcante, que caiu nas graças do grande público, abrindo mais espaço na mídia para os canadenses, ficando entre os dez álbuns mais vendidos da Billboard naquele ano e ganhando disco de platina pela RIAA (órgão norte-americano responsável pelas gravadoras). Foi "top ten" também no Reino Unido e em diversos outros países mundo afora.

Absolutamente indispensável aos fãs de boa música, sua audição hoje se torna uma bela homenagem ao desde já saudoso Neil Peart.




Rush - Permanent Waves

1. The Spirit of Radio 4:57
2. Freewill 5:23
3. Jacob's Ladder 7:28
4. Entre Nous 4:37
5. Different Strings 3:49
6. Natural Science 9:16
- Tide Pools 2:21
- Hyperspace 2:47
- Permanent Waves 4:08

Produzido por Rush e Terry Brown

Geddy Lee: Baixo, sintetizador polifônico Oberheim, sintetizador OB-1, Mini Moog, pedais Taurus, vocais.

Alex Lifeson: Guitarras e violões de 6 e 12 cordas, pedais Taurus.

Neil Peart: Bateria, tímpanos, timbales, sinos de orquestra, sinos tubulares, carrilhão, sinos, triângulo, crótalos.

Hugh Syme: Teclado em "Different Strings"; capa e direção de arte

Neil Peart: "Deus" voltou pro céu...





"Suddenly, you were gone
From all the lives you left your mark upon"


Antes de começar o texto em homenagem a um de meus maiores heróis na história da música, uma breve explicação para o título, para evitar qualquer mal entendido: trata-se de uma brincadeira pessoal, sempre comentava desde adolescente que se um dia Deus viesse à Terra e montasse uma banda de rock, ela seria o Rush e Ele seria Neil Peart.

E através desta breve explicação você leitor já deve perceber o quanto esse cara significava para quem está lhe escrevendo agora: longe de ser apenas mais um baterista, a perfeição e complexidade dos arranjos percussivos do Professor (como foi chamado diversas vezes por Geddy Lee), aliado ao seu perfil culto e sua vida pessoal e personalidade reservada criaram esta aura de um ser fora do comum habitando entre nós - embora ele mesmo sempre fosse humilde o bastante para jamais se deixar levar para os caminhos sem volta do ego inflado.




A humildade era tanta que o cara que já era considerado perfeito (quem nunca ouviu a história de que ele conseguia segurar uma moeda na parede batendo com as baquetas nela?) achou que precisava de aulas e podia melhorar quando a banda retornou no começo deste século, após superar as tragédias pessoais inenarráveis de perder a filha e a esposa em um curto espaço de tempo:  

- "O que é um mestre senão um estudante? É preciso aprimorar e explorar as possibilidades em sua profissão. Estou nessa posição e certamente não a subestimo. Consegui ser um baterista profissional. Consequentemente, há a responsabilidade de me dedicar a isso o tempo todo, mesmo quando não estou em turnê. Preciso me manter em forma. É uma alegria e sou grato por isso”




Apelidado de "novato" pelos colegas de banda por ter entrado quando o trio formado pelos amigos de infância Geddy Lee e Alex Lifeson já existia, Neil Ellwood Peart era o famoso ponto fora da curva: mal sabiam eles, mas o baterista mudou os rumos do Rush. Não apenas tocando, mas também escrevendo. E escrevendo letras maravilhosas, que versavam sobre o que você imaginar: ficção científica, carros, personagens literários, história, filosofia, a fama, o tempo... Era apaixonado por livros e sua inspiração parecia sem fim, não apenas para elaborar arranjos inimitáveis nas baquetas, mas também para escrever o que o amigo Lee cantaria. Alguns exemplos:

"Ao crescer, vemos que tudo é parcial
As opiniões, todas prontas
O futuro, pré-decidido
Avulso e subdividido
Na zona de produção em massa
Não há lugar para o sonhador
Ou para o deslocado, tão solitário"

("Subdivisions", 1982, do álbum "Signals")


"Rápidos para julgar
Rápidos para se irritar
Lentos para entender
Ignorância e preconceito e medo
Caminham de mãos dadas"

("Witch Hunt", 1981, do álbum "Moving Pictures")



"Se você escolher não se decidir
Você também fez uma escolha"

("Freewill", 1980, do álbum "Permanent Waves")



"Não, sua mente não está para alugar
Para nenhum deus ou governo
Sempre esperançoso, embora descontente
Ele sabe que as mudanças não são permanentes
Mas a mudança sim"

("Tom Sawyer", 1981, do álbum "Moving Pictures")

Introspectivo, tinha tiradas geniais sobre o assédio dos fãs: costumava dizer para quem quisesse ouvir que se sentia desconfortável tocando em casa (Toronto, no Canadá), pois sempre surgiam do nada os famosos aproveitadores se dizendo "amigos de velha data" querendo favores como ingresso ou acesso ao backstage. Falava também que não sabia lidar com fãs, afinal eram pessoas que não conhecia e não achava certo alguém vir tirar sua liberdade num jantar em um restaurante para tirar uma foto junto a ele - para quem não sabe, "Limelight", uma das mais famosas canções do Rush, fala justamente sobre essa aversão ao mundo midiático da fama.




Tive o imenso prazer de ver o Rush ao vivo nas duas vezes em que visitaram nosso país. E inúmeras  vezes de ver e rever minha coleção de shows e ouvir nos álbunsas maravilhas que o trio mais perfeito da história do rock gravou. Assim, mesmo que o reservado Neil pudesse achar estranho, ele fez sim parte do cotidiano de milhões de pessoas que na sexta-feira dia 10 de janeiro choraram juntos como se tivessem perdido um familiar ou um amigo íntimo. Desculpa cara, mas você mudou a vida de muita gente. E muito obrigado não só por isso, mas por todos estes anos de excelência, integridade, bom gosto e tudo mais que você nos proporcionou... A Jam Session aí no outro plano ganhou um reforço de peso...

Vai em paz, Professor! E, mais uma vez, MUITO OBRIGADO!









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