A história de "The Wall", a ópera rock do Pink Floyd sobre isolamento e confinamento começa bem antes de ela sequer ter sido concebida. Em 1977, durante a turnê chamada "In The Flesh" de divulgação do álbum "Animals", Roger Waters se via cada vez mais frustrado com relação aos fãs e as apresentações ao vivo. Vindo de uma época onde o grupo foi formado e o que importava era a música, era inconcebível para ele que a banda tivesse se tornado uma "jukebox" para o público, que pedia incansavelmente nos shows por hits como "Money", e parecia pouco se importar com o que estava acontecendo no restante da apresentação. E foi em um desses shows no dia 6 de julho, em Montreal, no Canadá, no auge da frustração e raiva, que ele alvejou um fã barulhento que não se cansava de gritar e tentava subir no palco: uma cusparada certeira, que após o calor do momento deixou-o completamente pasmo consigo mesmo.
Não sabendo como lidar com aquilo, surgiu a ideia de construir um muro à frente do palco, isolando a banda do público e exibindo projeções enquanto tocavam, de modo semelhante ao que costumavam fazer em sua fase inicial e psicodélica. Ideia que, obviamente, causou estranhamento junto ao restante dos membros do Floyd. Disposto a levar o conceito adiante, Waters mergulhou fundo em sua própria história e num verdadeiro esporro de criatividade, começou a compôr diversas canções com temáticas pessoais para contar uma história sobre um roqueiro que aos poucos vai se alienando do mundo e se isolando dentro de si próprio: surgia assim a obra-prima "The Wall", que completa 40 anos de seu lançamento e ainda hoje é um dos discos mais vendidos da história, que deu origem a um filme de arte igualmente inesquecível.
A relação de Roger com os colegas já não vinha sendo das melhores: no livro sobre "Dark Side Of The Moon" há relatos dos próprios membros do Floyd dizendo que este havia sido o último momento em que haviam trabalhado realmente como um grupo nas composições - Roger iria tomando as rédeas e se tornando cada vez mais "ditador" quanto às composições e decisões internas, rejeitando sem a menor cerimônia tudo que lhe era exposto pelos outros músicos, principalmente o tecladista Richard Wright.
Em "The Wall" a coisa piorou de vez: tomando o projeto como um verdadeiro filho seu, sua arrogância chegou ao extremo de expulsar Wright do grupo, trazendo-o de volta após muita insistência de David Gilmour e Nick Mason, mas apenas como músico contratado, sem poder de decisão e com menos ganhos em relação aos demais. Literalmente ninguém iria se opôr ao que ele tinha em mente quanto ao vindouro disco.
Mesmo com o ambiente tão ruim, o resultado foi literalmente de cair o queixo: Waters expurgou todos os seus demônios, como a ausência do pai que nunca conheceu (morto na guerra, quando ele ainda era bebê), os professores opressores que enfrentou nas escolas, a mãe super protetora, as turnês exaustivas, além de seu próprio autoritarismo... tudo ali era um "tijolo" que ia se juntando ao outro, erguendo um muro ao redor do protagonista da história (na verdade, ele próprio), até formar um muro e isolá-lo completamente do mundo, onde em meio a esta catatonia ele viria a ser julgado pela própria consciência com base em tudo o que viveu junto a estes outros personagens e momentos de sua vida.
E para uma banda grandiosa com um trabalho tão grandioso, a turnê não poderia deixar a desejar: o tal muro foi realmente concebido e executado! Durante o show, uma equipe de roadies se encarregava de ir erguendo o paredão enquanto "The Wall" era executado na íntegra. Uma banda "substituta", que aparece em "In The Flesh" (de onde veio mesmo este nome?) foi devidamente contratada para começar o show com as máscaras "sem rosto" dos membros do Floyd que ficariam populares anos depois no filme sendo usadas pelas crianças em "Another Brick In The Wall". Projeções com animações a cargo de Gerald Scarfe eram exibidas no muro, enquanto bonecos infláveis gigantes de algumas personagens surgiam frente ao palco - Scarfe, aliás, depois se tornaria um dos chefões de animação da Disney, graças ao sucesso de seu trabalho aqui.
Mas, obviamente, era tudo muito trabalhoso. E estamos falando de 40 anos atrás! Se recentemente Roger Waters conseguiu cruzar o globo com sua turnê reproduzindo com uma tecnologia mais atualizada todo este conceito, na entrada da década de 1980 tudo era muito mais difícil e custoso. Sem falar que não era qualquer promotor de shows que gostaria de se arriscar a bancar os custos e riscos de trazer um show tão grandioso. A turnê acabou tendo pouco mais de 20 shows, ficando restrita à Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos - todas elas com ingressos disputadíssimos e esgotados. Um registro ao vivo da turnê foi lançado anos depois, mesclando apresentações feitas em Londres, em Earl's Court, sob o nome de "Is There Anybody Out There? - The Wall Live 1980-81". Há também registros em vídeo não oficial que podem ser facilmente encontrados pela internet: um da apresentação em Londres em 1980 e outro de Nova York (Nassau Coliseum).
Quanto ao filme, Alan Parker foi o diretor do projeto em 1983, que trouxe Bob Geldof (vocalista o Boomtown Rats e idealizador do festival beneficente Live Aid) no papel principal. Para a trilha sonora foram lançadas algumas canções inéditas, como "What Shall We Do Now?" e "When Tigers Broke Free", além de versões diferentes e remixadas. das que compõem o álbum original.
Por fim, falar de músicas isoladamente aqui seria um pecado, mas é inegável que temas como "Another Brick In The Wall pt. 2", "Hey You", "Run Like Hell" e a magnífica "Comfortably Numb" acabaram se fixando como temas favoritos na história do grupo pelos fãs. Mas é o tipo de trabalho para jamais se ouvir selecionando apenas as faixas favoritas: em um momento onde ninguém mais tem tempo para ouvir um disco inteiro (e muita gente, aliás, nem músicas inteiras ouve mais), é um verdadeiro exercício benéfico para os ouvidos, cérebro e alma ouvir esta obra do começo ao fim, seguindo suas letras e entrando de cabeça no seu contexto. Aliás, que tal agora?
Pink Floyd - The Wall (1979)
Roger Waters – vocal, baixo, violão, guitarra, sintetizadores, efeitos sonoros, co-produtor
David Gilmour– guitarra, violão, vocal, baixo, sintetizadores, co-produtor
Nick Mason – bateria, percussão
Richard Wright – piano, órgão Hammond, piano elétrico, sintetizadores, pedais
Bob Ezrin – produção; arranjo orquestral
Michael Kamen – arranjo orquestral
James Guthrie – coprodutor; engenheiro
Músicos convidados:
Bruce Johnston – backing vocals
Toni Tennille – backing vocals
Joe Chemay – backing vocals
Jon Joyce – backing vocals
Stan Farber – backing vocals
Jim Haas – backing vocals
Bob Ezrin – piano; órgão; sintetizadores; órgão; backing vocals
James Guthrie – percussão; sintetizador; efeitos sonoros
Jeff Porcaro – bateria em "Mother"
Crianças da Islington Green School – vocais em "Another Brick in the Wall Part II"
Joe Porcaro – bateria em "Bring the Boys Back Home"
Lee Ritenour – guitarra rítmica em "One of My Turns"
Joe (Ron) di Blasi – violão em "Is There Anybody Out There?"
Fred Mandel – órgão em "In The Flesh?" e "In the Flesh"
Bobbye Hall – congas; bongos em "Run Like Hell"
Frank Marrocco – concertina em "Outside the Wall"
Larry Williams – clarinete em "Outside the Wall"
Trevor Veitch – bandolin em "Outside the Wall"
New York Orchestra – orquestra
New York Opera – coral
"Vicki & Clare" – backing vocals
Harry Waters – voz da criança em "Goodbye Blue Sky"
Chris Fitzmorris – voz masculina no telefone
Trudy Young – voz da groupie
Phil Taylor – efeitos de som