"Ouça Tommy com uma vela acesa e você verá todo o seu futuro"
(Cena do filme "Quase Famosos")
Com a frase acima, em uma cena crucial no começo de seu semi-autobiográfico filme, Cameron Crowe mostra um verdadeiro rito de passagem, onde William Miller, personagem principal do filme que representa o próprio diretor, recebe de herança de sua irmã mais velha todos os seus álbuns de rock quando esta sai de casa para ir trabalhar como aeromoça. E o bilhete acima traduz de certa forma não só o universo que se abriria diante dele, que viria a se tornar um jornalista precoce apaixonado pelo rock and roll, mas também o modo como o quarteto britânico tomou de assalto o cenário ao lançar este ambicioso projeto e conquistou milhões de fãs ao redor do mundo dali por diante.
"Tommy", olhando hoje em dia, pode até não parecer isso tudo para a geração mais nova, mas foi um verdadeiro divisor de águas tanto na história do grupo quanto no próprio panorama e cultura da música popular, em especial do rock. Não foi o primeiro álbum conceitual, aquele que trabalha amarrando todas as músicas em um mesmo tema, mas foi a primeira ópera-rock a se popularizar em grandes proporções, a ser apresentada na íntegra no palco durante sua turnê, e posteriormente a virar filme e musical da Broadway.
Após algum tempo se exercitando em obras mais elaboradas, como uma mini-ópera de 8 minutos na música "A Quick One (While He's Away)" e no álbum "The Who Sell Out", onde se recriava no vinil uma transmissão de uma emissora de rádio com direito até a jingles e propagandas, Pete Townshend surge com o conceito desta obra que fala sobre essencialmente sobre libertação. E com ela, tratar de alguns temas pessoais e expurgar alguns demônios, como o abuso sexual infantil e o bullying, que o próprio enfrentou ao longo de sua vida, além de criticar o fanatismo religioso, tendo sido muito inspirado pelas ideias do seu guru espiritual Meher Baba.
E tudo isso veio através da história do garoto Tommy Walker, um garoto cujo pai desaparecido na guerra foi dado como morto, e vivia pacificamente criado pela mãe e seu companheiro, até que repentinamente o Capitão Walker ressurge em casa e assassina o amante de sua esposa, fato presenciado pelo filho que entra em estado de choque catatônico, e a partir daí se isola do mundo, ficando "cego, surdo e mudo", não exprimindo quaisquer tipos de sensações.
Os pais reconciliados buscam todo tipo de ajuda para que o filho volte ao normal: médico, curandeiros, até mesmo uma profissional do sexo... mas nada funciona... A única forma de comunicação de Tommy com o mundo exterior é através de uma mesa de pinball, onde ele se torna um verdadeiro ás e quebra todos os recordes do jogo, passando a ser venerado e cultuado.
Obviamente não seria fácil convencer a gravadora a um projeto tão ambicioso, artístico e fora das convenções assim. Mas o produtor Kit Lambert comprou a ideia de Pete, e uma entrevista antes mesmo das gravações junto à Rolling Stone expôs todo o conceito do álbum e deixou os fãs bastante curiosos. Assim, com o sinal verde, mas com um Pete ainda reticente e pouco confiante, "Tommy" começava a ganhar vida.
Contando com a colaboração de seus companheiros de banda para desenvolver suas demos pré-gravadas apenas com um violão em casa, a história ia crescendo e se desenrolando além do que seu idealizador poderia imaginar. Pete atribuiu a John Entwistle a tarefa de escrever sobre alguns temas que o incomodavam, os abusos sofridos durante a infância - e este criou as soturnas "Cousin Kevin" e "Fiddle About". Já o extravagante Keith Moon contribuiu com a divertida "Tommy's Holiday Camp". O vocalista Roger Daltrey, por sua vez, praticamente encarnou Tommy durante as gravações, entregando uma de suas melhores performances vocais de sua carreira.
Se foi libertador para Pete tratar destes assuntos, Roger Daltrey também aproveitou do momento para se libertar de uma imagem forjada e assumir sua verdadeira pompa de rockstar, assumindo os cabelos naturalmente cacheados e exibindo sua boa forma física, ao se apresentar sempre sem camisa abaixo de sua jaqueta - "nós tínhamos esse deus do rock ao nosso lado o tempo todo e nunca havíamos percebido", disse Pete sobre o vocalista.
E se era no palco que o The Who entregava sempre o seu melhor, as apresentações da banda passaram a ser cada vez mais concorridas, pois "Tommy" passou a ser tocada praticamente na íntegra em todos os seus shows dali em diante. Tando que o baixista John Entwistle afirmou que passou anos sem ouvir o álbum, exausto das inúmeras sessões de gravações e de tanto reproduzi-lo ao vivo.
O sucesso foi tamanho que em 1975 o projeto ganhou as telas dos cinemas, em filme dirigido por Ken Russell, com Roger Daltrey no papel principal, contracenando com estrelas do porte de Ann-Margret, Oliver Reed, Jack Nicholson, além de grandes nomes da música também como Tina Turner, Elton John e Eric Clapton. Posteriormente, em 1991, seria levado aos palcos da Broadway em uma adaptação musical que contou com colaboração do próprio Pete.
Uma curiosidade: "Pinball Wizard", a música mais conhecida do álbum (senão de toda a carreira do The Who) surgiu meio que ao acaso - Pete Townshend a criou porque faltava um "single" em potencial para divulgar o álbum, e até então nem sequer havia a ideia de que Tommy seria campeão de pinball. A história não só da música, como também de todo o álbum, é muito bem contada no excepcional documentário "Sensation: The Story Of Tommy", simplesmente imperdível!
Vamos então todos juntos celebrar os 50 anos desta verdadeira obra-prima... Apague as luzes, acenda suas velas, e coloque "Tommy" pra rolar... Sua vida nunca mais será a mesma após esta experiência...
"Tommy can you hear me?"...